“Há estrelas que não se apagam; apenas saem de nosso campo de visão. Mas continuam ali, eternas, no firmamento.”

– Você precisava ver um goleiro que tinha no meu tempo, filha. Nossa Senhora! Era bom pra caramba. Não usava luvas e pegava a bola com uma mão só. Nunca vi outro igual. Jogou no Palestra Italia e no Palmeiras.

– Quem era ele, pai?

– Oberdan Cattani.

Foi assim que Oberdan Cattani passou a fazer parte do meu mundo palestrino e do meu imaginário. Um goleiro que pegava a bola com uma mão só deveria ser um gigante… A julgar pela cara do meu pai, e do olhar dele viajando em suas memórias, me contando sobre os títulos conquistados com Oberdan, eu podia imaginar as defesas que ele havia feito e as emoções que fizera o meu pai sentir.

Muito tempo depois, quis a vida, assim como quem não quer nada,  me conceder o privilégio e a honra de conhecer Oberdan Cattani, um dos maiores jogadores da história da Sociedade Esportiva Palmeiras, que fez parte da “Arrancada Heroica”, de 1942, que fez parte do time campeão da Copa Rio, o Mundial de Clubes, em 1951.

Tinha me tornado amiga de uma de suas filhas, a Mônica, que ao saber do meu amor pelo Palmeiras me disse que o pai havia sido jogador do Verdão. Mas ela acrescentou que eu não o conhecia, porque ele tinha jogado há muito tempo.

Num instantinho, o meu cérebro fez a ligação com o sobrenome da minha amiga…

-Você é filha do Oberdan Cattani?

– Você conhece meu pai?

– Mas é claro que conheço! Um dos maiores jogadores que o Palmeiras já teve!

Cinco minutos depois, minha amiga me colocava ao telefone com a lenda do gol do Verdão. Eu nem sabia o que dizer, mas aquele vozeirão do outro lado da linha era tão simpático, transmitia tanta bondade e humildade que a conversa fluiu normalmente. Eu, ao telefone com Oberdan Cattani, “A Muralha Verde”, quem haveria de imaginar? Meu pai mal acreditou quando contei pra ele.

Semanas depois, eu estaria diante de Oberdan, em sua festa de aniversário. Ele já tinha mais de setenta anos, mas continuava muito grande, de porte ereto, altivo, imponente… como o Palmeiras. Que emoção eu senti ao conhecê-lo e abraçá-lo.

Não me fiz de rogada e fui logo medir a minha mão com a dele. Deus do céu! Ela era imensa! Ele, de uma simplicidade adorável, se divertia com o meu assombro e a minha empolgação, e ríamos os dois.

Naquele mesmo dia, Oberdan me mostraria o seu “museu”, o seu quarto no andar de cima da casa, onde a história do Palmeiras transbordava em faixas de campeão, medalhas, troféus, jornais, revistas, flâmulas, bandeiras, chaveiros, desenhos, cartões de prata, quadros, camisas, e tudo mais que se pudesse imaginar. Quantos tesouros! Quantas homenagens e honrarias ele recebera ao longo da carreira e da vida. E ele ia me contando a história do Palmeiras, apenas relembrando as suas memórias de jogador… Eu me deliciava com aquelas preciosidades todas, com aquelas histórias. Oberdan fazia a ponte entre o Palestra Italia/Palmeiras que não vivi com o Palmeiras de agora… .

Poder tocar aquelas faixas, de títulos conquistados pelo Palmeiras quando eu ainda nem tinha nascido, era algo surreal, era como entrar numa máquina do tempo… Minha sensibilidade quase me transportava para aquele tempo que não conheci, quase me permitia ver as imagens de jogos que não assisti… As faixas não pareciam guardadas há tanto tempo, pelo contrário, pareciam novas!

E ele me deixava tocá-las, beijá-las, colocá-las, com aquela bondade que tinha na voz, no jeito de chamar a gente de “filha”. Tirei uma foto com a faixa do Palmeiras campeão de 42… meu pai era menino nesse tempo, deve ter ficado tão feliz com aquela conquista do Verdão…  a ‘menina’, feliz, agora era eu; Oberdan se divertia com isso.  E a “menina” entendia que não seria possível contar a história do Palmeiras sem falar de Oberdan Cattani, tampouco se poderia falar sobre Oberdan Cattani sem falar sobre o Palmeiras. As histórias dos dois se misturavam.

E assim, nossa amizade nasceu… Amizade que me permitiu conseguir comprar ingressos para a final de 1993, e viver uma das maiores alegrias da minha vida – no dia do aniversário de Oberdan. Mesmo tendo chegado cedinho ao Palestra, e ficado horas na fila das bilheterias, fui informada que os ingressos haviam acabado, tão logo a fila começara a andar – ela tinha andado apenas alguns metros desde o momento que as bilheterias abriram. Não fosse Oberdan, mesmo eu tendo assistido a todos os jogos do campeonato, não teria visto o título do Paulistão 93… E passei na casa dele depois do jogo, para agradecer o favor, lhe desejar feliz aniversário e comemorar a conquista (e logo fui para a Paulista).

E através dele pude conhecer Valdemar Fiume, Servílio, Fabio Crippa, Dudu, Turcão… e todas as vezes que nos encontrávamos nas festas de aniversário de Oberdan, nos divertíamos com a famosa “história da geladeira” (uma loja havia oferecido uma geladeira para quem conseguisse fazer um gol em Oberdan, e Turcão marcara contra. A brincadeira é que, dizem – Oberdan dizia rindo -,  ele fez de propósito…)

E assim,  eu pude conhecer o pai e avô amoroso, o amigo (suas amizades eram de longa data) por trás daquela lenda, pude conhecer a pessoa íntegra, simples, divertida, e conheci o torcedor, apaixonadíssimo pelo Palmeiras. E assim, eu conheci também muitas histórias… como a de um certo jogo contra um certo maior inimigo…

“… o atacante deles (ele me disse o nome do jogador, mas eu não me lembro) veio pra cima de mim e meteu as travas da chuteira na minha perna. Me rasgou a coxa. Continuei no jogo e pensei, na próxima, eu pego esse f… d… p…. 
Ah, quando ele veio pra cima, eu também fui… quebrei quatro costelas dele…”. E era só risada, da ouvinte e do narrador…

Conheci o homem vaidoso, de cabelo e bigode impecáveis, sempre elegante em suas festas, que mesmo com “uma dorzinha no joelho” se levantava para cumprimentar cada um de seus convidados.

– Mas o senhor tá bonito hoje, hein?

– Você acha, filha? Muito obrigado. – ele me dizia sorrindo.

Conheci o ídolo, atencioso com os fãs, que ajudava muita gente jovem a fazer os seus TCCs, contando, com riqueza de detalhes, a história do Palestra Italia que passou a se chamar Palmeiras; e ele, um dos personagens principais dessa parte de nossa história, se lembrava de tudo.

Fosse pelo ídolo, fosse pela pessoa dele (a pessoa e o torcedor que ele foi o fez ser mais ídolo ainda), não tinha como não amar Oberdan Cattani… não tinha como não achar que ele era um “parente”…

Mas o tempo, ah, esse malvado, tão apressado quando a gente não quer, foi passando rápido… e meu ídolo foi ficando quase centenário. Por isso, todas as vezes em que eu tinha o privilégio de estar diante de Oberdan, principalmente, em suas festas de aniversário, ciente da maravilha de estar diante de alguém que fez parte do Palestra Italia (o seu último representante), e ajudou o Palmeiras a nascer campeão, que conquistou o nosso Mundial,  que fazia a ponte entre o passado e o presente do Palmeiras, eu fazia questão de beijar as suas bochechas, de segurar as suas mãos e dizer pra ele o quanto nós, palestrinos, o amávamos; mandava os recados dos torcedores, os votos de feliz aniversário… e ele sempre dizia: “Obrigado, filha. Fala pra eles que eu agradeço.”

Uma insuficiência respiratória o levou de nós na sexta-feira (20), e ainda não consigo acreditar que tivemos que nos despedir dele… Oberdan ‘dormiu’ numa cama de hospital – uma toalha do Palmeiras, por cima do cobertor, cobria o seu peito – para acordar no Olimpo Palestrino, onde estão Turcão, Echevarrieta, Fabio Crippa, Junqueira, Servílio, Valdemar Fiume…

As despedidas aconteceram no Palmeiras, o lugar que ele mais amava… uma bandeira do Palmeiras e outra do Brasil cobriam o seu caixão…

Eu queria tanto que ele tivesse tido mais tempo… queria tanto que ele pudesse ter recebido o busto em sua homenagem na sua festa de aniversário, marcada para o dia 19… que pudesse ter sido homenageado na festa do centenário do Palmeiras… queria ter podido ligar mais uma vez e ter ouvido aquele vozeirão me dizendo: “Alôôôô!”, queria ter podido lhe dar mais um abraço… mas a vida tinha outros planos…

Acho que Valdemar Fiume, Junqueira, Turcão e o narrador Fiori Gigliotti… estavam com saudade do amigo e precisando de um goleiro… Fabio Crippa devia estar pendurado por cartão…

Ídolos são pra sempre, “seo” Oberdan. Você viverá em nossos corações e em nossas lembranças. Jamais se poderá falar do Palmeiras e do futebol brasileiro sem que você seja lembrado. Sua passagem por aqui foi sensacional.

Você agora é eterno, é a nossa ponte para o sempre.

Obrigada por tanto.

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